Instituto Pensar - Afeganistão, feminismo ocidental e o complexo de salvador

Afeganistão, feminismo ocidental e o complexo de salvador

por: Juliene Silva


Socialismo Criativo Juventude em Movimento é a coluna quinzenal e exclusiva para o site Socialismo Criativo assinada por  Juliene Silva (PSB-RJ) . Militante do Partido Socialista Brasileiro (PSB), ajuda, desde os 16 anos a construir um país melhor, mais igualitário e com mais respeito e liberdade.

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Boa leitura!

Afeganistão, feminismo ocidental e o complexo de salvador

Nas últimas semanas houve intensa exposição da Saída do Exército dos EUA do Afeganistão e a consequente tomada de poder do Talibã. Nesse cenário uma das principais pautas debatidas foi a opressão feminina exercida pelo grupo.

Os frequentes debates sobre o tema se referem a uma lógica opressora do islamismo e se materializam através da exposição fotografica de mulheres afegãs utilizando burcas e e veus, o que particupalamente é um ponto problematico que iremos debater aqui.

O ativismo ocidental, principalmente o não socialista ou comunista, tem a tendência de classificar como não opressivo aquilo que lhe transmite liberdade, sem incorporar a essas análises a cultura e os costumes de quem está se referindo.

Em determinado momento a Association of African Women for Research and Development [ Associacao das Mulheres Africanas para Pesquisa e o Desenvolvimento] observou:

Essa nova cruzada do Ocidente tem sido guiada pelos preconceitos morais e culturais da sociologia ocidental judaico-cristã: agressividade, ignorância ou mesmo desprezo, paternalismo e ativismo são elementos que enfurecem e depois chocaram muitas pessoas de boa vontade. Ao tentar alcançar seu próprio público, as novas cruzadas se tornaram insensíveis à dignidade das mesmas mulheres que desejam "salvar?. Elas não têm nenhuma consciência a respeito do racismo latente que tal campanha evoca nos países onde o preconceito etnocêntrico está tão profundamente enraizado. E em sua convicção de que esta é uma "causa justa? , elas se esqueceram de que tais mulheres de uma raça diferente e de uma cultura diferente também são seres humanos e que a solidariedade só pode existir lado a lado com a autoafirmação e o respeito mútuo. 1

Tal fala refere-se à insistência das mulheres ocidentais em retratar a sexualidade como o maior problema africano, mas adequa-se perfeitamente à atual conjuntura das mulheres afegãs cujo feminismo ocidental insiste em representar sua opressão através do uso de ornamentos religiosos.

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Angela Davis observou em seu livro mulheres, cultura e política:

Há muito tempo, óbvio, o véu tem sido considerado um símbolo da opressão das mulheres na cultura islâmica, e com frequência supõe-se que, por causa dele, o sexismo é qualitativamente mais ofensivo às mulheres muçulmanas do que as suas colegas ocidentais ? a fixação do véu entre a intelectualidade do ocidente tem distorcido as tentativas de analisar a condição das mulheres nos países árabes 2

A análise centrada na figura da mulher coberta se prova uma falta de vontade em compreender profundamente as reais estruturas de opressão orientais, e entenda, aqui não faço qualquer defesa ou crítica a utilização desses adereços mas reforço a importância de se trabalhar a questão de gênero superficialmente.

Fazendo um paralelo com o feminismo brasileiro, podemos citar as conclusões sobre a liberdade da exposição dos corpos femininos e o acesso à espaços de poder, que são lutas justas e necessárias, mas não funcionam quando não posicionadas a partir de recortes de raça e classe. E sinceramente parece não haver qualquer intenção em se aprofundar nas nuances do tema ou deixar que as mulheres pretas e pobres o conduzam.

O que se desdobra desse pensamento é que ? retiradas especificamente aquelas que se concentram em estudar o tema- não temos qualquer legitimidade para apontar quais são os problemas de outras mulheres ou eleger quais são suas pautas prioritárias e seus símbolos de opressão. E aqui entendam que não falo sobre o famoso "lugar de fala? ou sobre a impossibilidade de se falar sobre o tema, mas sim da nocividade e prepotência de colocar a sua visão, de fora do centro do debate, como a ideal.

Nossa função, quando nos deparamos com um tema que não nos atravessa, é compartilhar as construções teóricas e sociais sobre ele e amplificar a luta por emancipação daquelas que por ele são atravessadas. Algo fora disso é apenas complexo de salvador.

1- Association of African Women for Research and Development "A Statement on Genital Mutilation? em Miranda Davies (org). Third World, Second Sex .Londres. Zed. 1983. p.217

2- DAVIS, Angela. Mulheres, Cultura e Política. 1 Edição. São Paulo. Boitempo. 2017. p.120



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